Estava tudo indo relativamente bem. O casamento, o trabalho, os estudos e até mesmo a vida espiritual estava sendo organizada e tudo que eu precisava era esperar o fim do ano para colocar uma beca e tirar umas fotos com mamãe.
Até que...
Tudo mudou...
A formatura vai acontecer, mas sem beca e mamãe também não sairá mais nas fotos.
A vida é mudança, constante. Tudo muda o tempo inteiro, trazendo lições e levando embora as já aprendidas. No meio desse processo de se despedir das coisas e de receber tantas outras novas existe um momento denominado: DOR.
A dor, geralmente vem acompanhada de algo que foi retirado de nós, seja temporária ou definitivamente e precisa de tempo para ser administrada.
Meu momento de dor veio acompanhado da morte da minha linda mãe. A guerreira que eu tive o privilégio de ter conhecido, amado, brigado (normal, né?) e com a qual eu aprendi umas das lições mais preciosas da minha vida: O desapego.
Minha mãe possuía uma extraordinária capacidade de se desapegar das coisas e isso incluía uma dose concentrada de caridade. Ela dava tudo para todo mundo. Se alguém não tivesse dinheiro para fazer um bolinho para o filho no aniversário, bastava contar esse pequeno problema para ela e tudo automaticamente estava resolvido. E eu fui crescendo com um sem número de bolos de aniversários feitos com tanto carinho e zelo para muitas crianças, orfanatos, vizinhos, amigos... Ela dava roupas também e tudo o mais que estivesse vestindo. Bastava alguém elogiar e ela tirava do braço a pulseira, o anel, o relógio, a blusa, a bolsa. E ficava satisfeita da vida.
É claro que ela exigia um pagamento por isso: Bastava dizer que o bolo tinha sido um sucesso (e repetir, Ah. Como ela adorava quando as pessoas repetiam os elogios), que ninguém nunca havia comido salgadinhos tão especiais e que o presente que acabara de receber era exatamente aquilo que a pessoa esperava há séculos. Os olhos dela brilhavam e ela falava nisso por horas.
Ela era briguenta também, adorava falar com os gerentes nos restaurantes, parava de falar com os vizinhos (e isso durava de cinco à dez minutos) e depois, lá ia ela com um pedacinho de bolo fazer as pazes. Ela tinha uma capacidade para fazer as pazes!
Era autêntica, cheia de personalidade, inteligente, viajada, espirituosa, cheia de amor pelos filhos, pela mãe, pelo marido, pelos irmãos de crença, pela vida.
Ela venceu o primeiro câncer como quem vence uma gripe. Era um acontecimento no INCA quando ela chegava com seus lenços coloridos e bordados ensinando receitas e fazendo amizades.
Ela fez muitos amigos.
Era extremamente fácil gostar daquele jeitinho doido de ser que chegava e se fazia notar pela timbre alto da voz e pela vontade de ajudar as pessoas.
Brigamos muitas vezes. Porque eu demorei a entender que esse jeito dela era o que a tornava ainda mais especial e que não ia adiantar querer que fosse igual à minha vó.
E porque ela também demorou a entender que minha opção era por amor.
E de repente essa pessoa que enchia a casa passou mal e os sinais de que algo de grave estava acontecendo foram muitos. O sorriso aberto foi substituído por um amarelado, repleto de medo.
Hoje, percebo que ela sabia o que estava acontecendo e já estava se despedindo.
Eu também sabia.
E também estava morrendo de medo.
E foi com esse medo que entrei no INCA com ela no colo no dia 14/08. Ele também me acompanhou nas cinco noites posteriores quando eu velei seu sono e fiquei atenta à sua respiração.
Não havia mais sorrisos, mais receitas, mas ela estava ali e era tudo que eu tinha.
E o medo foi indo embora noite após noite, diminuindo e dando espaço para uma dor que quase se tornou física.
Vê-la ir embora foi a pior cena de toda minha vida, ainda que eu soubesse que ela estava em paz e que não estava sentindo dor.
Eu estava.
Quase enlouqueci naquela manhã de sábado quando a vi passar coberta.
Quando precisei sepultá-la, na tarde do mesmo dia.
E hoje, quando precisei colocar suas roupas em sacos pretos para doação.
Pensei que seria menos difícil.
E que doeria menos, já que tivemos tempo para nos despedir e eu consegui falar tudo que eu precisava.
Pensei que eu conseguiria dizer adeus com mais facilidade.
Mas, de repente lembrei da mãe que ela foi, da pessoa que ela foi, da quantidade de amigos que estiveram lá para prestar uma última homenagem, da salva de palmas, da música...
E cheguei à conclusão de que seria impossível passar pela perda de uma pessoa tão extraordinária, facilmente.
Que seja difícil então, que seja enlouquecedor.
Mas que seja essa a dor que me fortalecerá para colocar em prática, as lições de caridade que ela me ensinou.
Obrigada, mãe!
Por ter sido meu anjo da guarda por tanto tempo!